...percorrendo metros de rua olho para os olhos de quem passa incansavelmente, procurando fragmentos de almas que pudessem ser, de alguma forma, meus. Olhava também os meus próprios olhos procurando-me a mim, e a comparação entre os olhares permitiu estabelecer na minha alma semelhanças entre espíritos de corpos distintos. Neste instante, porém, algo brilhou no espirito que me possui: olhava para os olhos dos outros e olhava somente o vazio naquele fragmento, vislumbre de alma possuidora. Olhei de novo os meus olhos: vi aquilo que sempre tinha visto. Perplexo, admirado, pasmado: esta percepção era-me incompreensivel, como interpretar esta mudança súbita de estados? Não fazia ideia...seria eu quem tinha sofrido mudança?...seriam todos os outros que teriam mudado?... mantive-me consciente durante todos estes periodos de observações, por isso, se eu mesmo tivesse sido transformado, não poderia dar conta da minha mudança: da mesma forma que o meu espírito era mutado, também a minha forma de o olhar. Se, no entanto, o mundo não tivesse mudado, seria clara para mim uma mudança no olhar dos outros...Podia pensar, contudo, da forma inversa: Se o meu espírito tivesse mantido intactas as suas propriedades, sobre mim, não poderia olhar qualquer mudança. Tendo mudado os outros seres em vez de mim mesmo, observaria, da mesma forma que se tivesse sido eu a mudar e não eles, uma mudança clara no seu olhar. Encontrei-me num dilema: não poderia saber se tinha sido eu ou os outros exteriores a mim a sofrerem a transformação que notei. Em que deveria eu acreditar: deveria eu acreditar que tivesse evoluido, tendo o mundo permanecido intacto, ou deveria acreditar que todos tivessem evoluído à exepção da minha própria alma?...exasperação tomava conta das emoções: para poder pensar, formar juizos, tirar conclusões sobre este estranho fenómeno, teria que tomar uma posição e tirar as conclusões a partir dela. Era-me impossivel manter-me mentalmente são caso não admitisse uma permissa: seria eu quem mudara, ou seria todo o mundo que mudara? do ponto de vista da minha alma a resposta era clara: eu sabia que tinha sido eu a ser transformado e não os outros. Acreditei na hipótese que me parecera mais plausivel: uma mudança súbita tinha ocorrido em mim, tomei na minha consciencia uma perspectiva diferente do mundo que me envolvia, por enquanto incompreensivel, irracional: como poderia eu olhar o vazio no olhar dos outros? qual será a razão deste vazio? o que seria este vazio?
Instantes após esta tomada de consciência, tão nova para mim, invadiram-me, sem a permissão da minha vontade, pensamentos horriveis..pensamentos que escorriam em catadupa..a cada instante que passava olhava os outros e percebia neles estados bizarros de consciencia. Começava a olhar o mundo de uma forma mecanicista, sem espaço para espontaneadade: os outros pareciam-me desprovidos de vontade, agiam de forma pre-determinada. Os seus passos soavam a indiferença, soavam a nada: caminhavam sem saber porquê, trabalhavam sem saber porquê, falavam sem saber porquê, viviam porque estavam vivos - da mesma forma que poderiam permanecer mortos porque esse seria o estado que lhes teria sido atribuido. O mundo estava articulado, cada um dos seus membros era movido devido às engrenagens do seu organismo interior: os outros seres humanos eram rodas do engenho: se uma roda tomasse uma direcção, as rodas adjacentes giravam no sentido imposto pela primeira, e assim sucessivamente até a roda que permite o movimento dos membros começar a girar. Quem ou o que detia o poder para rodar a primeira das rodas, era agora, o mistério que pairava em mim. Ao mesmo tempo que estas interrogações me invadiam ocorreu-me o outro pensamento que me causara um arrepio- seria certamente o pensamento que mudaria a minha vida para sempre: até hoje também eu era apenas uma roda desta engrenagem. Girava no sentido imposto pela roda anterior a mim. Neste instante, no entanto, tomei consciencia da minha vontade, da minha capacidade de escolha, do meu livre arbitrio. Até então possuia livre arbítrio...mas...que tolo...era uma ilusão tão perfeita, nascida comigo...teria sempre sido incapaz de escolher, as minhas escolhas tinha já sido feitas...Neste instante, apenas neste instante, eu sabia o que era a liberdade. Os outros pareciam-me presos em jaulas mentais, incapazes de olhar o mundo de forma diferente daquela que lhes tinha sido imposta. Era este o vazio que olhava nos olhares, um vazio de vontades, de ideias, de questões. Quem seria o responsavel por esta morte mental?...o que seria responsavel por esta morte cerebral?...não sabia! não podia adivinhar! pânico aterrador era a sensação que tomava conta de mim. Como poderia eu mudar os outros? Como poder mudar este mundo, que me era, neste momento, tão impróprio?
Continuava a andar na rua, outros continuavam a passar por mim. Contiuava a olhar para eles, apercebendo-me que aquilo que pensava era a realidade, não apenas uma alucinação. Após breves momentos, um olhar tomou conta da minha atenção. Olhei os seus olhos, olhei os seus contornos, olhei a sua pupila, a sua iris. Penetrei bem dentro daqueles olhos, viajei pelo caminho que separava aquele olhar daquela alma, desde a superfície dos olhos até ao cerébro, bem dentro dele: quando vi aquela alma gelei, fiquei assustado: percebi que não era suposto ter-se dado em mim esta transformação. Temi os olhos que perscutava e desviei o olhar. Aqueles olhos lançaram-me ameaças que jamais poderia ignorar. Nesse momento algo tomara conhecimento que algo de errado se passava com uma das rodas daquele organismo. Essa roda era eu: o eixo em torno do qual rodava mudou de orientação, agora a minha roda girava sem imposição das demais. O tempo urgia: sem mim uma porção infindavel de rodas deixaria de rodar como suposto. O meu espírito estava em perigo. Não tardava teria que ser reparado, e com isso, a minha vontade desaparecia, muito embora não o pudesse saber após ter sido reparado: eu tinha sido um pequeno erro, outros teriam já acontecido, outros teriam já sido reparados. E o mundo continuava a mover-se.
Branco...Preto...Branco...Preto...Branco...abri os olhos após um breve piscar. Ia para o emprego. O mundo parecia-me bonito, radiante, belo. Cumprimentava as pessoas que passavam por mim: como era bom viver neste mundo....